Almendra e os primeiros passos de Luis Alberto Spinetta – Parte 1

Introdução

Buenos Aires estava fervilhando após a estreia dos Gatos e o estouro de “La Balsa”, o hit do grupo que alavancou o movimento do rock portenho. Ao lado do conjunto de Litto Nebbia, as recém-formadas Almendra e Manal se destacavam como as bandas mais importantes da cena argentina do final dos anos 60 e início dos 70.

Manal e Almendra em um artigo da revista Pelo, 1970

Infância e adolescência: a gênese da banda 

Nascido em fins de janeiro de 1950, Luis Spinetta apresentava-se desde criança como um ser musical. Cantava nas festas de família e fazia aparições em bailinhos demonstrando um talento precoce. Em 1964, fez seu debut na televisão no programa Escala Musical, que teve um papel crucial na carreira dos Gatos.

Com o dinheiro ganho desta apresentação aos 14 anos de idade, Spinetta comprou o disco “Beatles For Sale” elevando a um nível absoluto seu fanatismo pelo quarteto de John Lennon e Paul McCartney. Vivendo o auge da beatlemania, o adolescente Luis encontrava-se entre o jazz e o rock, o tango e a nueva ola. 

Uma guitarra emprestada de um vizinho e algumas aulas com um guitarrista que havia acompanhado a seu pai também músico, Luis Santiago, possibilitaram a Luis Alberto aprender acordes básicos para tornar-se um músico autodidata.

Spinetta por volta de seus 15 anos, quando começou a escrever suas primeiras canções.

A formação do Almendra surgiu de uma fusão entre dois grupos de rock cantado em inglês do bairro de Bajo Belgrano, Los Sbirros e Los Larkins. Os últimos eram liderados por Rodolfo García, que viria a ser o baterista do Almendra. No caso dos Sbirros quem estava a frente era Edelmiro Molinari, conhecido por ser um destaque na guitarra elétrica, acompanhado por Emilio Del Guercio, futuro baixista do Almendra, e seu irmão Ángel. 

Era 1966 quando, no segundo ano do ensino médio, Spinetta conheceu Del Guercio, um colega do Colégio San Román. Os dois viraram “unha e carne”, suas personalidades se complementavam e partilhavam um gosto artístico-musical muito parecido, por mais que Luis se interessasse mais pelo rock e Emilio pelo folk.

Amizade de longa data: Emilio Del Guercio e o Flaco quando se conheceram, na época do San Román.

No ano seguinte, a explosão do single de Tanguito e Litto Nebbia inspirou grande parte da juventude argentina daquele momento a não só compôr e cantar suas canções, mas cantá-las em espanhol. Isso era mal visto por diversas gravadoras e setores da imprensa, já que existia um “abismo” entre o conceito da canção tradicional argentina e o rock britânico.

Em 1968, a combinação dos Mods (antigos Larkins) com os Sbirros sintetizou-se em um quinteto com o Flaco Spinetta nos vocais e guitarra rítmica, Edelmiro Molinari na guitarra solo, Rodolfo García na bateria, Emilio Del Guercio no baixo e Santiago “Chago” Novoa nos teclados.

Depois da saída do tecladista Santiago Novoa, por simplesmente deixar de ir aos ensaios na casa dos Spinetta convertida parcialmente em estúdio na Rua Arribeños 2853, restou a formação clássica que perduraria em seus 2 LPs.

Livres do empecilho da formação do grupo, os quatro rapazes tinham pela frente uma questão bem mais complicada: escolher o nome do projeto. Nomes como El Tribunal de La InquisiciónVicuña e Aquelarre estavam entre as opções possíveis, até que Del Guercio e García propuseram um título que agradou a todos: Almendra

A residência dos Spinetta em Belgrano onde o Almendra costumava ensaiar. O lugar existe até hoje e é um ponto turístico para os fãs do rock portenho. 

O acesso da banda a uma gravadora aconteceu em meados de 68 depois de um recital que chamou a atenção de Ricardo Kleiman, apresentador de um influente programa de rádio da época. Interessado pelo som do Almendra, ofereceu ao grupo a gravação de um single pela RCA, que consistiu em “Tema de Pototo” no lado A e “El Mundo Entre Las Manos” no lado B. 

“Tema de Pototo” é uma canção dos tempos que o Almendra começou a ensaiar diariamente das 17hs às 20:30hs em Arribeños e inspirada na notícia desmentida da morte de um companheiro de curso muito próximo de Luis, após Rodolfo García prestar o serviço militar. 

A canção acabou se tornando o primeiro sucesso do conjunto.

1969: A estreia 

Durante todo o verão de 69 o Almendra tocou em Mar Del Plata, onde foi realizada a estreia do grupo, que via algumas de suas canções regravadas por outros artistas alcançarem relativo sucesso na América Latina. 

Em Buenos Aires a primeira apresentação do Almendra deu-se em fins de março, coincidentemente no mesmo festival em que a Manal, outra banda que sedimentaria o rock argentino.

Ao longo do primeiro trimestre de 1969, músicas que integrariam o primeiro disco Almendra I (”Fermín”, “Figuración” e “Ana No Duerme”), foram adicionadas às apresentações junto de outras até hoje nunca gravadas em estúdio. O segundo single saiu algum tempo depois, formado por “Hoy Todo El Hielo En La Ciudad” e “Campos Verdes”.

Nesse momento, uma das maiores rupturas do quarteto com o resto do cenário musical de Buenos Aires era o uso da poesia como papel principal e não coadjuvante do instrumental. Ademais o estilo musical não atrelado a nenhum gênero específico era mais uma peculiaridade. 

A banda ainda gravou dois videoclipes neste ano, para “Campos Verdes” e “El Mundo Entre Las Manos”, ambos em preto e branco.  

Entretanto, foi no domingo 6 de junho, que os acordes iniciais de “Muchacha (ojos de papel)” foram tocados ao vivo pela primeira vez. Expressando seus sentimentos por sua namorada, a letra de Luis Alberto não era apenas uma declaração de amor sua mas, por identificação do grande público, passou a ser a de muita gente. Converteu-se em um clássico absoluto, sendo a faixa de maior destaque do LP de estreia e tida por muitos como a “Yesterday” argentina.

 Cristina Bustamante, a “muchacha”, e Spinetta em fins dos anos 60.

Entre o olho e a lágrima: Almendra I (1969)

Entre abril e setembro de 69, o grupo se dedicou exclusivamente à gravação de seu primeiro disco, apontado como um dos melhores da música argentina.

Ao mesmo tempo em que gravavam as faixas do LP, o quarteto lançou seu terceiro e último single do ano pela RCA. “Tema de Pototo” no lado A e “Final” no B. Originariamente, o Almendra queria promover “Gabinetes Espaciales” ao invés de “Pototo”, escolhida pela gravadora. “Gabinetes” voltou a aparecer somente em uma compilação em vinil da RCA tempos depois. “Final” supostamente terminaria o “Almendra I”, porém não foi incluída pela limitação de tempo do vinil. Sua letra com alegorias fantasiosas era outra característica visceral do primeiro projeto de Spinetta. 

Lançado em 29 de Novembro de 1969, o LP possui na capa uma espécie de palhaço com uma camiseta da banda e um lenço amarrado na cabeça com uma flecha espetada sobre ele, enquanto escorre uma lágrima de seu olho esquerdo. É um desenho do próprio Flaco que foi rejeitado de primeira pela gravadora, que chegou a “perdê-lo” intencionalmente. Mas a insistência do vocalista com o desenho não deu aos executivos da RCA outra opção. Acabou virando um símbolo da carreira de Luis Spinetta e do rock argentino. 

O disco tem 9 músicas, sendo 7 de Spinetta, uma de Molinari (“Color Humano”) e uma de Del Guercio (“Que El Viento Borró Tus Manos”), apresentando pitadas de Sgt. Peppers, folclore e romancismo. Conta ainda com uma mistura um tanto incomum para aquele final de anos 60 na Argentina, entre o tango e o rock, a partir do bandoneón de Rodolfo Mederos na última faixa (“Laura Va”).

O lado A é composto dos temas “Muchacha (ojos de papel)”, “Color Humano”, “Figuración” e “Ana No Duerme”. Já o de encerramento por “Fermín”, “Plegaria Para Un Niño Dormido”, “A Estos Hombres Tristes”, “Que El Viento Borró Tus Manos” e “Laura Va”.

“Muchacha” não à toa abre o LP, resumindo bem o legado do Almendra e de Spinetta para a música por meio de um surrealismo poético com abundância de metáforas. 

“Color Humano” de Molinari, cantada pelo Flaco Spinetta, fala sobre “sermos humanos sem saber o que é um ser humano” e “vermos todas as cores sem saber o que é uma cor”, demonstrando a elevada maturidade dos integrantes, que tinham entre 19 e 23 anos. 

A balada “Figuración” passa uma mensagem metafísica ao ouvinte, objetivo de Spinetta ao pedir para desfigurarmos a nós mesmos. O arranjo tem flauta e gaita tocadas por Emilio Del Guercio e coros da banda intercalados. Curioso lembrar que os coros tiveram a presença de Pappo, um dos mais renomados guitarristas argentinos e futuro fundador das lendárias Pappo’s Blues e Aeroblus.

O ápice roqueiro do “Almendra I” se dá em “Ana No Duerme”, comparada a “See Emily Play” do Pink Floyd por tratar de uma garota que a está a espera de algo, no caso de ser amada e entendida por alguém, além do ritmo acelerado da faixa representando os planos interrompidos da jovem.

Resumida pela frase de Spinetta “a vida é para os insanos o que a guerra é para os sãos”, a letra de “Fermín” conta a história de uma personagem com problemas mentais em uma instituição. O próprio Luis conheceu um garoto deficiente quando criança, que em parte era a personificação de Fermín para ele. A canção chamava a atenção para a situação de muitos alienados mentais  que são vítimas das mais abomináveis situações.

Em contínua melancolia, inicia-se “Plegaria Para Un Niño Dormido”. Sua melodia é similar à de canções de ninar já que aborda a temática de uma criança dormindo feliz em seus sonhos e o eu lírico tentando não acordá-la. É uma crítica sutil à injustiça da sociedade, associada por Luis Spinetta a símbolos da ideologia cristã como a solidariedade e a vizinhança. Foi escrita por ele em 1965, quando tinha apenas 15 anos, sendo uma das canções mais antigas do seu repertório.

A tristeza dos dias de domingo foi inspiração para o sétimo tema do álbum, “A Estos Hombres Tristes”. Através de um eufemismo, fala da morte como “um vôo sem volta” em meio a outras metáforas. Pode ser descrita como uma suíte urbana, que nos leva aos céus dos homens mortos e aos parques portenhos com suas reuniões familiares de final de semana.

O jazz estampa sua marca em “Que El Viento Borró Tus Manos”, da autoria do baixista Emilio Del Guercio, que assume os vocais principais além de tocar flauta na canção, mostrando o quão versátil e adiantado era o conjunto para seu tempo. 

Tendo demorado 1 ano e meio para ser escrita, “Laura Va” encerra o disco e constitui uma tentativa de fazer “She’s Leaving Home” dos Beatles em espanhol. Se provou muito mais do que uma homenagem, mas um intercâmbio entre dois estilos que não costumavam se misturar, e que deu muito certo. A orquestração e os vocais de um Spinetta com somente 19 anos de idade criam uma atmosfera única para este final do álbum.

A recepção do “Almendra I” foi positiva, mesmo não havendo muita divulgação nos jornais sobre música jovem, salvo por artigos em revistas como GenteSiete DíasPinap e Clarín. A resenha do Clarín em particular desagradou Spinetta pois questionava o uso da diástole (recurso poético que permite “trocar” a acentuação de palavras para a última sílaba) afirmando que o vocalista havia acentuado errado ao falar “plegariá” ao invés de “plegaria” em “Plegaria Para Un Niño Dormido”. 

O atrito entre a popularidade das canções e sua complexidade poética também causaram uma onda de críticas negativas e má interpretações a respeito da banda, servindo de gatilho para a postura reacionária em relação meios de comunicação de Spinetta, que perduraria durante boa parte de sua carreira.

 O quarteto na capa da Pinap, após lançarem seu primeiro LP. A revista era uma das principais divulgadoras da música jovem argentina.

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