Almendra e os primeiros passos de Luis Alberto Spinetta – Parte 2

1970: Almendra II, o desmoronamento 

Com o êxito do disco de estreia, a banda se consagrou. Porém diferenças musicais e pessoais entre os integrantes passaram a interferir na harmonia que eles tinham entre si. 

O abandono da disciplina dos ensaios, que tanto caracterizavam o grupo em seu início, foi uma das principais razões para que o Almendra fracassasse em estreiar uma ópera rock em meados de 1970. Devido a esse “relaxamento” do quarteto, apenas os dois primeiros atos chegaram a ser ensaiados.

Escrita por Spinetta logo após o lançamento do Almendra I, tratava-se de uma releitura da própria cena argentina que surgia, incluindo personagens reais como Litto Nebbia dos Gatos, Roque Narvaja da Joven Guardia e Javier Martínez da Manal. Não existem registros gravados dessa ópera, mas Spinetta interpretaria anos depois diversas canções que supostamente a integrariam como “Canción Para Los Días de La Vida”, “Obertura” e “Ella También”.

A capa mostra uma foto do grupo no centro de um labirinto verde, cujas linhas apontam para cada membro da banda. Na contracapa há uma continuação do labirinto, onde vemos uma pequena amêndoa entre um de seus espaços. Ambas foram desenhadas e pensadas por Spinetta, que procurou fazer um paralelo gráfico da situação em que a banda se encontrava: não sabemos onde começa nem onde termina o desenho, mas que tudo desemboca na amêndoa, que representava a música, o coração do grupo. Existem interpretações afirmando que essa amêndoa solitária significaria o afastamento artístico entre o primeiro e o segundo disco do Almendra, enquanto o labirinto representaria o rumo incerto do conjunto. Para Spinetta, este LP deveria alcançar o “paroxismo”, uma espécie de desintegração da música de forma vertiginosa. 

Mais experimental e eclético que seu antecessor, “Almendra II” deflagra o final de uma banda já em “frangalhos” e sem a mesma disposição de antes, por mais que este último disco apresente um toque muito mais roqueiro que o de estreia. Havia uma clara influência da Manal, trio liderado pelo baterista Javier Martínez e responsável por popularizar o blues rock na cena argentina, conferindo um som mais pesado ao disco. O consumo de drogas por Spinetta, principalmente LSD, colaborou para a atmosfera psicodélica bastante presente no álbum.

Uma das grandes diferenças com relação ao 1º LP é a divisão da autoria das canções. Dos 21 temas deste segundo trabalho, onze são de Spinetta, cinco de Molinari, três de Del Guercio e as outras duas da autoria de Spinetta e Del Guercio. No disco anterior, sete das nove canções eram creditadas ao Flaco Spinetta. 

A contracapa do “Almendra II”, com a famosa amêndoa elaborada pelo Flaco.

“Almendra II” é o único disco duplo do grupo e foi lançado em 17 de Dezembro de 1970, cerca de três meses depois da separação da banda. O disco 1 tem “Toma El Tren Hacia El Sur” (uma das minhas favoritas), “Jingle”, “No Tengo Idea”, “Camino Difícil”, “Rutas Argentinas”, “Vete de mi, cuervo negro” (outra que gosto bastante), “Aire de Amor” e “Mestizo” no lado A. “Agnus Dei” e “Para Ir” no lado B. Já o disco 2 abre com “Parvas”, “Cometa Azul”, “Florecen los nardos” e “Carmen”. Enquanto  “Obertura”, “Amor de Aire”, “Verde llano”, “Leves instrucciones”, “Los Elefantes”, “Un pájaro te sostiene” e “En Las Cúpulas” encerram o lado B.

Comunidades hippies e a política influenciaram a composição de “Toma El Tren Hacia El Sur”, faixa que abre o disco 1. Seus versos falam sobre tomar um trem até o sul, a patagônia argentina, onde havia a comunidade hippie El Bolsón. Era uma das mais famosas da época e foi a referência de Spinetta para este tema. O contexto da Guerra Fria e de militância na canção se dá pela referência a “passar um pente no cabelo e usar uma boina vermelha”, aludindo às boinas usadas por guerrilheiros. Antes do Almendra, tanto Emilio Del Guercio como Luis Spinetta militaram na esquerda peronista.

Contendo apenas 4 versos, a alegre “Jingle” poderia se confundir com algo relacionado à publicidade por seu título. A letra fala de uma pessoa que está “voltando do conto veloz” e que “sua sombra está por seguir ainda que sua cara seja a de um tonto”. É sobre alguém que quer seguir mas não pode, já que ocuparam seu lugar, forçando essa pessoa a ir embora. Parece remeter a alguns momentos da vida onde somos obrigados a decidir se queremos lutar ou nos render, muitas vezes por infortúnios do destino. 

O blues “No Tengo Idea” é a primeira composição de Molinari neste disco e é das faixas mais roqueiras do álbum. Possui um riff de guitarra inovador para aqueles tempos, onde Pappo ainda não havia estreado e Manal era quem dominava o cenário do blues portenho. Um detalhe de sua composição é o uso de uma pessoa verbal diferente a cada estrofe, algo incomum até hoje.

“Camino Difícil” retoma a temática política, inspirada pela participação na esquerda peronista de seu autor Emilio Del Guercio. Evidências disso são as palavras “fuzil”, “companheiro” e “general”. O general citado na letra é Juan Domingo Perón, apelidado assim como forma de “driblar” a censura, que havia proibido a menção de seu nome.

Ao contrário do que muitos pensam, não é uma canção de protesto, modalidade que estava no auge durante o final dos anos 60 e início dos anos 70. Apresenta verossimilhança com esse passado do baixista do Almendra, porém de uma forma estritamente poética.

Em seguida temos “Rutas Argentinas”, das mais famosas canções do “Almendra II”. Faz uma ligação com “Toma El Tren Hacia El Sur” por retratar a situação de jovens esperando por caronas na estrada, onde iriam “hasta el fin”(até o fim), levando “buenas cosas” (coisas boas). Esse final das rotas seria o sul do país, repleto de lugares desérticos e menos opressores que a cidade, naquela época marcada pela ditadura militar. No final da faixa há uma mudança na letra, expressando a impaciência desses jovens  após esperarem muitas horas e não chegarem a lugar algum, se referindo ao motorista do “auto” (carro) que os levaria como “inútil”. É tida como um clássico do rock argentino por captar o espírito jovem dos anos 70 e ter uma melodia tão simples quanto marcante, muito influenciada pelo trio de Javier Martínez.

Já em “Vete de mi, cuervo negro” o blues surge de forma acústica. É uma das quatro canções do disco de duração inferior a dois minutos (junto com “Jingle”, “Verde Llano” e “Leves Instrucciones”).

Neste pouco mais de um minuto, Spinetta expressa a aflição do narrador com coisas que lhe causam dor e o atingem de forma negativa. A relação do Flaco com a temática da loucura começa a se desenvolver neste período, atingindo seu ápice mais a frente na era do Pescado Rabioso.

“Pelos largos”: Spinetta e Del Guercio no início dos anos 70.

A impactante “Aire de Amor” é a segunda canção de Molinari no disco e merece destaque pela versatilidade da cozinha Del Guercio-García além de um melódico riff de guitarra. Como o próprio título nos mostra, fala sobre uma pessoa apaixonada, que sente um “aire de amor” (ar de amor). Os versos foram baseados na relação do guitarrista Edelmiro Molinari com a cantora Gabriela, considerada a primeira cantora do rock argentino.

Fechando o lado A do disco 1, temos outra faixa de Molinari, “Mestizo”. Lançada anteriormente em 1970 como single junto de “Hermano Perro”. Classificada como o primeiro rock pesado feito na Argentina e um dos clássicos do Almendra. Trata-se de uma “[…] canção de unidade americana”, como afirmou Molinari, revelando o que o narrador da música poderia ou não fazer por sua condição de “mestizo” (mestiço).

Com seu título de referência cristã, signficando “cordeiro de Deus”, “Agnus Dei” dá início ao lado B do disco 1. Durante seus dois primeiros minutos temos a impressão de ouvir um folk progressivo, até que a música se converte em uma espécie de jam session pelos 12 minutos restantes. Os nomes mencionados na letra, Ana e Gustavo, são os irmãos de Spinetta. Inclusive Ana havia sido sua inspiração para compor “Ana No Duerme”, quarta faixa do “Almendra I”.

A balada acústica “Para Ir” termina o lado B do disco 1, mostrando uma característica sempre presente na poesia de Spinetta: a visão da morte como uma ascensão ao céu, o melhor lugar para a luz que habita dentro de nós se manifestar. A pessoa a quem o autor se refere, seria sua namorada na época, a musa de “Muchacha (ojos de papel)”, Cristina Bustamante. “Para Ir” dialoga com o clássico do primeiro disco do Almendra (“Muchacha”) no trecho “quiero que sepan hoy, qué color es que robé cuando dormías” (quero que saibam hoje qual é a cor que roubei quando dormias). 

Quadros do pintor Jean-François Millet serviram de base para a composição de “Parvas”, primeira música do disco 2. O tema fala da relação entre impotência e trabalho, já que em 1970 Luis Spinetta havia se tornado músico profissional. A impotência aparece nas súplicas do narrador, que pede às medas de trigo tempo para fugir, pois ele já não vive nem “consiste”. 20 anos depois, em 1990, Spinetta faria uma nova versão da música para o disco ao vivo “Exactas”, onde o roque psicodélico do último trabalho do Almendra ganhou mais uma estrofe e se transformou em um reggae. 

A faixa que introduz a parceria Del Guercio-Spinetta é a surrealista “Cometa Azul”, associada ao consumo de LSD e interpretada pelo baixista Emilio Del Guercio. A ligação do azul à paz mencionada na letra não é por acaso, essa cor simboliza harmonia e tranquilidade, contrastando com a afirmação “os homens com voos noturnos te amarão”. Segundo interpretações, esses homens teriam suas mentes inquietas durante a noite, e ao encontrar o “cometa azul” conseguiriam finalmente alcançar a serenidade. 

”Florecen Los Nardos” retoma o aspecto político do disco, desta vez no contexto da Guerra do Vietnã. O tema, que flerta com o folk em seu final, fala de uma ferida a qual o narrador não suporta. Se referindo a um companheiro “legionário”, a suposta ferida do eu na música, seria esse conflito entre a guitarra elétrica, os reacionários e a morte. Com esse tom provocador, Spinetta afirmou mais uma vez o objetivo do paroxismo do quarteto, de desfigurar sua música, levando a banda à uma mudança profunda.

Finalizando o lado A do disco 2 temos “Carmen”, um folk cantado por Emilio Del Guercio. Conta a história de uma mulher que não ama sua mãe, não tem pai e é considerada “suja”. Os coros do quarteto, a percussão de García e o solo de Molinari no encerramento são o que mais se sobressaem dessa faixa, mostrando a evolução musical do Almendra. 

A banda ao vivo na primeira edição do festival B.A Rock, em 1970

Composta como abertura da ópera rock que não vingou, “Obertura” começa o lado B do disco 2 destacando-se pelo excelente trabalho de Edelmiro Molinari na guitarra. Por causa de seu ritmo único, a canção chegou a ser chamada de um encontro entre Pete Townshend do The Who e o candombe, estilo musical típico da Argentina e do Uruguai. 

“Amor de Aire”, título espelhado da sétima canção do álbum (“Aire de Amor”), fala mais diretamente sobre o relacionamento de Edelmiro com Gabriela. Narrada em terceira pessoa, refere-se a uma mulher que “veio do campo visitar a cidade” e fez o cantor “cair diluído em seus sonhos”. Gabriela de fato veio do interior, tendo passado parte da infância numa propriedade familiar em uma província do centro-oeste da Argentina.

“Verde Llano” é um instrumental profundamente marcado pelo jazz. Assobios e um dedilhado de violão ajudam a criar um clima lúdico e agradável, funcionando de interlúdio nesse lado B. 

A segunda letra de Spinetta e Del Guercio, “Leves Instrucciones”, é extremamente marcada pelo uso de alucinógenos. Spinetta afirmou estar sob efeito de ácido quando a escreveu.

Del Guercio assume os vocais na canção, que apresenta incoerência sonora entre a triste melodia do piano e o som de uma explosão em seu final.

A crueldade contra os animais vista no filme Mondo Cane (1962) inspirou Spinetta a escrever “Los Elefantes”. A letra fala sobre o modo sereno dos elefantes enfrentarem a vida e a morte, abordando a ideia de um mundo sem alegria nem dor, um mundo zen. Futuramente Spinetta faria várias canções sobre animais (“Serpiente de Gas”, “Tengo Un Mono”, “La Pelícana y el Androide”), baseadas na ideia de uma “transposição indireta” onde os animais pensariam e agiriam como nós. 

Última música de Del Guercio no disco, a caótica “Un pájaro te sostiene” possui uma melodia dividida em duas partes bem distintas: um riff de guitarra marcante, quase hard rock que se desintegra e dá espaço a uma balada de piano e voz. O tema fala de alguém que nunca tem as coisas sob controle e que “cada vida tem sua forma”. A letra se choca com o título ao questionar: “¿para qué vas a ver si un pájaro te sostiene?” (o que você irá ver se um pássaro te sustenta?), demonstrando a influência do LSD nas composições do álbum duplo. 

Mostrando a busca do Flaco por uma estética própria, que viria a ser denominada “spinetteana”, “En Las Cúpulas” representou uma ruptura não só com o público, mas com a própria estética da banda até então. O tema associa as “cúpulas” à heróis, anjos, idiotas e mentiras em linguagem figurada. Também refere-se a “corpos da liberdade” e a “lindas chuvas que os banham”. Em seu brado final, termina por convocar o ouvinte a derrubar estas “cúpulas”, restando apenas árvores. Este trecho da canção aborda a realidade política daqueles anos, que foi objeto constante de inspiração para o Almendra em seu trabalho final. 

A apresentação do quarteto no festival B. A Rock (Buenos Aires Rock) de 1970 ante 10.000 pessoas foi uma de suas últimas apresentações ao vivo. A despedida oficial aconteceu em um teatro do bairro de Flores, na capital portenha, classificado como um dos melhores concertos já feitos por uma banda de rock em espanhol, ainda mais por uma que em menos de um ano havia se convertido na mais famosa do país.

Após a separação da banda, Spinetta viria a lançar seu primeiro e obscuro disco solista “Spinettalandia Y Sus Amigos”, enquanto Edelmiro Molinari formaria o grupo Color Humano junto de Oscar Moro (ex-Los Gatos e um dos maiores bateristas argentinos) e Rinaldo Rafanelli (ex baixista do Sui Generis). Rodolfo García e Emilio Del Guercio se juntaram a Hector Starc e Hugo González Neira no Aquelarre, o terceiro projeto originado a partir da dissolução do Almendra. 

É inegável a contribuição desse quarteto para a música argentina e latino-americana. 50 anos depois da estreia, a poesia de Spinetta e as melodias executadas de forma brilhante pelo grupo continuam a instigar diversas gerações a conhecer e explorar esse universo mágico. Só temos a agradecer por esse legado único e resumido em amor, amizade e música. Muita música.

No festival Pinap em 1969, encantando almas e corações com suas músicas eternas no imaginário latino-americano. 

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